XVIII






Justiça e responsabilidade – O problema do mal


A lei dos renascimentos, dissemos, rege a vida universal. Com alguma atenção, poderíamos ler em toda a Natureza, como num livro, o mistério da morte e da ressurreição.


As estações sucedem-se no seu ritmo imponente. O inverno é o sono das coisas; a primavera é o acordar; o dia alterna com a noite; ao descanso segue-se a atividade; o Espírito ascende às regiões superiores para tornar a descer e continuar com forças novas a tarefa interrompida.


As transformações da planta e do animal não são menos significativas. A planta morre para renascer, cada vez que volta a seiva; tudo murcha para reflorir. A larva, a crisálida e a borboleta são outros tantos exemplos que reproduzem, com mais ou menos fidelidade, as fases alternadas da vida imortal.


Como seria, pois, possível que só o homem ficasse fora do alcance dessa lei? Quando tudo está ligado por laços numerosos e fortes, como admitir que nossa vida seja como um ponto atirado, sem ligação, para os turbilhões do tempo e do espaço? Nada antes, nada depois! Não. O homem, como todas as coisas, está sujeito à lei eterna. Tudo o que tem vivido reviverá em outras formas para evoluir e aperfeiçoar-se. A Natureza não nos dá a morte senão para dar-nos a vida. Em conseqüência da renovação periódica das moléculas do nosso corpo, que as correntes vitais trazem e dispersam, pela assimilação e desassimilação cotidianas, já habitamos um sem-número de invólucros diferentes numa única vida. Não é lógico admitir que continuaremos a habitar outros no futuro?


A sucessão das existências apresenta-se-nos, pois, como uma obra de capitalização e aperfeiçoamento. Depois de cada vida terrestre, a alma ceifa e recolhe, em seu corpo fluídico, as experiências e os frutos da existência decorrida. Todos os seus progressos refletem-se na forma sutil da qual é inseparável, no corpo etéreo, lúcido, transparente, que, purificando-se com ela, se transforma no instrumento maravilhoso, na harpa que vibra a todos os sopros do Infinito.


Assim, o ser psíquico, em todas as fases de sua ascensão, encontra-se tal qual a si mesmo se fez. Nenhuma aspiração nobre é estéril, nenhum sacrifício baldado. E na obra imensa todos são colaboradores, desde a alma mais obscura até o gênio mais radioso. Uma cadeia sem fim liga os seres na majestosa unidade do Cosmo. É uma efusão de luz e amor que, das cumeadas divinas, jorra e se derrama sobre todos, para regenerá-los e fecundá-los. Ela reúne todas as almas em comunhão universal e eterna, em virtude de um princípio que é a mais esplêndida revelação dos tempos modernos.


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A alma deve conquistar, um por um, todos os elementos, todos os atributos de sua grandeza, de seu poder, de sua felicidade, e para isso precisa do obstáculo, da natureza resistente, hostil mesmo, da matéria adversa, cujas exigências e rudes lições provocam seus esforços e formam sua experiência. Daí, também, nos estádios inferiores da vida, a necessidade das provações e da dor, a fim de que se inicie sua sensibilidade e ao mesmo tempo se exerça sua livre escolha e cresçam sua vontade e sua consciência. É indispensável a luta para tornar possível o triunfo e fazer surgir o herói. Sem a iniqüidade, a arbitrariedade, a traição, seria possível sofrer e morrer por amor da justiça?


Cumpre que haja o sofrimento físico e a angústia moral para que o espírito seja depurado, limpe-se das partículas grosseiras, para que a débil centelha, que se está elaborando nas profundezas da inconsciência, se converta em chama pura e ardente, em consciência radiosa, centro de vontade, energia e virtude.


Verdadeiramente só se conhecem, saboreiam e apreciam os bens que se adquirem à própria custa, lentamente, penosamente. A alma, criada perfeita, como o querem certos pensadores, seria incapaz de aquilatar e até de compreender sua perfeição, sua felicidade. Sem termos de comparação, sem permutas possíveis com seus semelhantes, perfeitos quanto ela, sem objetivo para sua atividade, seria condenada à inação, à inércia, o que seria o pior dos estados; porque viver, para o espírito, é agir, é crescer, é conquistar sempre novos títulos, novos méritos, um lugar cada vez mais elevado na hierarquia luminosa e infinita. E para merecê-lo é necessário ter penado, lutado, sofrido. Para gozar da abundância é preciso ter conhecido as privações. Para apreciar a claridade dos dias é mister haver atravessado a escuridão das noites. A dor é a condição da alegria e o preço da virtude, sendo esta última o bem mais precioso que há no universo.


Construir o próprio “eu”, sua individualidade através de milhares de vidas, passadas em centenas de mundos e sob a direção de nossos irmãos mais velhos, de nossos amigos do espaço, escalar os caminhos do Céu, arrojarmo-nos cada vez mais para cima, abrir um campo de ação cada vez mais largo, proporcionado à obra feita ou sonhada, tornarmo-nos um dos atores do drama divino, um dos agentes de Deus na obra eterna, trabalhar para o universo, como o universo trabalha para nós, tal é o segredo do destino!


Assim, a alma sobe de esfera em esfera, de círculos em círculos, unida aos seres que tem amado; vai, continuando as suas peregrinações, em procura das perfeições divinas. Chegada às regiões superiores, está livre da lei dos renascimentos; a reencarnação deixa de ser para ela obrigação para tornar-se somente ato de sua vontade, o cumprimento de uma missão, obra de sacrifício.


Depois que atingiu as alturas supremas, o Espírito diz, às vezes, de si para si:


“Sou livre; quebrei para sempre as algemas que me acorrentavam aos mundos materiais. Conquistei a ciência, a energia, o amor. Mas o que granjeei quero repartir com meus irmãos, os homens, e para isso irei de novo viver entre eles, irei oferecer-lhes o que de melhor há em mim, retomarei um corpo de carne, descerei outra vez para junto daqueles que penam, que sofrem, que ignoram, para os ajudar, consolar e esclarecer.”


E, então, temos Lao-Tse, Buda, Sócrates, Cristo, numa palavra, todas as grandes almas que têm dado sua vida pela humanidade!


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Resumamos. Havemos demonstrado, no decurso deste estudo, a importância da doutrina das reencarnações; vimos nela uma das bases essenciais em que assenta o Novo Espiritualismo; seu alcance é imenso. Ela explica a desigualdade das condições humanas, a variedade infinita das aptidões, das faculdades e dos caracteres, dissipa os mistérios perturbadores e as contradições da vida; resolve o problema do mal. É por meio dela que a ordem sucede à desordem, a luz se faz no seio das trevas, desaparecem as injustiças, as iniqüidades aparentes da sorte se desvanecem para ser substituídas pela lei máscula e majestosa da repercussão dos atos e de suas conseqüências. E essa lei de justiça imanente que governa os mundos foi inscrita por Deus no âmago das coisas e na consciência humana.


A doutrina das reencarnações aproxima os homens mais que qualquer outra crença, ensinando-lhes a comunidade de origens e fins, mostrando-lhes a solidariedade que os liga a todos no passado, no presente, no futuro. Diz-lhes que não há, entre eles, deserdados nem favorecidos, que cada um é filho de suas obras, senhor de seu destino. Nossos sofrimentos, ocultos ou aparentes, são conseqüências do passado ou também a escola austera onde se aprendem as altas virtudes e os grandes deveres.


Percorreremos todos os estádios da via imensa; passaremos alternadamente por todas as condições sociais para conquistar as qualidades inerentes a esses meios. Assim, a solidariedade que nos liga compensa, numa harmonia final, a variedade infinita dos seres, resultante da desigualdade de seus esforços e também das necessidades de sua evolução. Com ela, para longe vão a inveja, o desprezo e o ódio! Os menores de nós talvez já tenham sido grandes e os maiores tornarão a nascer pequenos, se abusarem de sua superioridade. A cada um, por sua vez, a alegria como a dor! Daí a verdadeira confraternidade das almas; sentimo-nos todos perenemente unidos nos degraus da nossa ascensão coletiva; aprendemos a ajudar-nos e a sustentar-nos, a estender a mão uns aos outros!


Através dos ciclos do tempo, todos se aperfeiçoam e se elevam; os criminosos do passado virão a ser os sábios do futuro. Chegará a hora em que nossos defeitos serão eliminados, em que nossos vícios e nossas chagas morais serão curadas. As almas frívolas tornar-se-ão sisudas, as inteligências obscuras iluminar-se-ão. Todas as forças do mal que em nós vibram ter-se-ão transformado em forças do bem. Do ser fraco, indiferente, fechado a todos os grandes pensamentos, sairá, com o perpassar dos tempos, um Espírito poderoso, que reunirá todos os conhecimentos, todas as virtudes, e se tornará capaz de realizar as coisas mais sublimes.


Essa será a obra das existências acumuladas; será sem dúvida indispensável um grande número delas para operar tal mudança, para nos expurgar de nossas imperfeições, fazer desaparecer as asperezas de nossos caracteres, transformar as almas de trevas em almas de luz! Mas só é poderoso e durável aquilo que teve o tempo necessário para germinar, sair da sombra, subir para o céu. A árvore, a floresta, a Natureza, os mundos no-lo dizem em sua linguagem profunda. Não se perde nenhuma semente, nenhum esforço é inútil. A planta dá suas flores e seus frutos somente na estação própria; a vida só desabrocha nas terras do espaço após imensos períodos geológicos.


Vede os diamantes esplêndidos que fazem mais formosas as mulheres e faíscam mil cores. Quantas metamorfoses não tiveram de passar para adquirir essa pureza incomparável, seu brilho fulgurante? Que lenta incubação no seio da matéria obscura!

Acontece o mesmo com a entidade humana. Para se purificar de seus elementos grosseiros e adquirir todo o seu brilho, são necessários períodos de evolução mais vastos ainda, muitos anos de aprisionamento na carne.


É nesse trabalho de aperfeiçoamento que aparece a utilidade, a importância das vidas de provas, das vidas modestas e despercebidas, das existências de labor e dever para vencer as paixões ferozes, o orgulho e o egoísmo, para curar as chagas morais. Desse ponto de vista, o papel dos humildes, dos pequenos neste mundo, as tarefas desprezadas patenteiam-se em toda a sua grandeza à nossa vista; compreendemos melhor a necessidade do regresso à carne para resgate e purificação.


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Resolvendo o problema do mal, o Novo Espiritualismo mostra, mais uma vez, sua superioridade sobre as outras doutrinas.


Para os materialistas evolucionistas, o mal e a dor são constantes, universais. Em toda parte – dizem Taine, Soury, Nietzsche e Haeckel – vemos espraiar-se o mal e sempre o mal há de reinar na humanidade; todavia – acrescentam –, com o progresso o mal decrescerá; mas será mais doloroso, porque nossa sensibilidade física e moral irá aumentando e será necessário sofrermos e chorarmos sem esperança, sem consolação, por exemplo, no caso de uma catástrofe, irreparável a seus olhos, como a morte de um ser querido. Por conseguinte, o mal sobrepujará sempre o bem.


Certas doutrinas religiosas não são muito mais consoladoras. Segundo o Catolicismo, o mal parece predominar também no universo e Satanás parece muito mais poderoso do que Deus. O inferno, segundo a palavra fatídica, povoa-se constantemente de multidões inumeráveis, ao passo que o paraíso é partilhado de raros eleitos. Para o crente ortodoxo, a perda, a separação dos seres que amou, são quase tão definitivas como para o materialista. Não há nunca para ele certeza completa de tornar a encontrá-los, de se lhes reunir um dia.


Com o Novo Espiritualismo a questão toma aspecto muito diferente. O mal é apenas o estado transitório do ser em via de evolução para o bem; o mal é a medida da inferioridade dos mundos e dos indivíduos, é também, como vimos, a sanção do passado. Toda escala comporta graus; nossas vidas terrestres representam os graus inferiores de nossa ascensão eterna.


Tudo ao redor de nós demonstra a inferioridade do planeta em que habitamos. Muito inclinado sobre o eixo, sua posição astronômica é a causa de perturbações freqüentes e de bruscas mudanças de temperatura: tempestades, inundações, convulsões sísmicas, calores tórridos, frios rigorosos. A humanidade terrestre, para subsistir, está condenada a um labor penoso. Milhões de homens, jungidos ao trabalho, não sabem o que é o descanso nem o bem-estar. Ora, existem relações íntimas entre a ordem física dos mundos e o estado moral das sociedades que os povoam. Os mundos imperfeitos, como a Terra, são reservados, em geral, às almas ainda em baixo grau de evolução.


Entretanto, nossa estada nesse meio é simplesmente temporária e subordinada às exigências de nossa educação psíquica; outros mundos, melhor aquinhoados sob todos os pontos de vista, nos aguardam. O mal, a dor, o sofrimento, atributos da vida terrestre, têm forçosa razão de ser; são o chicote, a espora que nos estimulam e nos fazem andar para frente.


Sob esse ponto de vista, o mal tem um caráter relativo e passageiro; é a condição da alma ainda criança que se ensaia para a vida. Pelo simples fato dos progressos feitos, vai pouco a pouco diminuindo, desaparece, dissipa-se, à medida que a alma sobe os degraus que conduzem ao poder, à virtude, à sabedoria!


Então a justiça patenteia-se no universo; deixa de haver eleitos e réprobos; sofrem todos as conseqüências de seus atos, mas todos reparam, resgatam e, cedo ou tarde, se regeneram para evolverem desde os mundos obscuros e materiais até a luz divina; todas as almas amantes tornam a encontrar-se, reúnem-se em sua ascensão para cooperarem juntas na grande obra, para tomarem parte na comunhão universal.


O mal não tem, pois, existência real, não há mal absoluto no universo, mas em toda parte a realização vagarosa e progressiva de um ideal superior; em toda parte se exerce a ação de uma força, de um poder, de uma causa que, conquanto nos deixe livres, nos atrai e arrasta para um estado melhor. Por toda parte, a grande lida dos seres trabalhando para desenvolver em si, à custa de imensos esforços, a sensibilidade, o sentimento, a vontade, o amor!


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Insistamos na noção de justiça, que é essencial; porque há precisão, necessidade imperiosa, para todos, de saber que a justiça não é uma palavra vã, que há uma sanção para todos os deveres e compensações para todas as dores. Nenhum sistema pode satisfazer nossa razão, nossa consciência, se não realizar a noção de justiça em toda a sua plenitude. Essa noção está gravada em nós, é a lei da alma e do universo. Por tê-la desconhecido é que tantas doutrinas se enfraquecem e se extinguem na presente hora, em redor de nós. Ora, a doutrina das vidas sucessivas é um resplendor da idéia de justiça; dá-lhe realce e brilho incomparáveis. Todas as nossas vidas são solidárias umas com as outras e se encadeiam rigorosamente. As conseqüências dos nossos atos constituem uma sucessão de elementos que se ligam uns aos outros pela estreita relação de causa e efeito; constantemente, em nós mesmos, em nosso ser interior, como nas condições exteriores de nossa vida, sofremos-lhes os resultados inevitáveis. Nossa vontade ativa é uma causa geradora de efeitos mais ou menos longínquos, bons ou maus, que recaem sobre nós e formam a trama de nossos destinos.


O Cristianismo, renunciando a este mundo, procrastinava a felicidade e a justiça para o outro; e se seus ensinamentos podiam bastar aos simples e aos crentes, tornavam fácil aos hábeis cépticos dispensar-se da justiça, pretextando que seu reino não era da Terra; mas com a prova das vidas sucessivas o caso muda completamente de figura. A justiça deixa de ser transferida para um domínio quimérico e desconhecido. É aqui mesmo, em nós e em torno de nós, que ela exerce o seu império. O homem tem de reparar, no plano físico, o mal que fez no mesmo plano; torna a descer ao cadinho da vida, ao próprio meio onde se tornou culpado, para, junto daqueles que enganou, despojou, espoliou, sofrer as conseqüências do modo pelo qual anteriormente procedeu.


Com o princípio dos renascimentos, a idéia de justiça define-se e verifica-se; a lei moral, a lei do bem se patenteia em toda a sua harmonia. Esta vida não é mais do que um anel da grande cadeia das suas existências, eis o que o homem afinal compreende; tudo o que semeia colherá mais cedo ou mais tarde. Deixa, portanto, de ser possível desconhecermos as nossas obrigações e esquivarmo-nos às nossas responsabilidades. Nisso, como em tudo o mais, o dia seguinte vem a ser o produto da véspera; por baixo da aparente confusão dos fatos descobrimos as relações que os ligam. Em vez de estarmos escravizados a um destino inflexível, cuja causa está fora de si, tornamo-nos senhores e autores desse destino. Em vez de ser dominado pela sorte, o homem, muito ao contrário, a domina e cria, independentemente dela, por sua vontade e seus atos. O ideal de justiça deixa de ser afastado para um mundo transcendental; podemos definir-lhe os termos em cada vida humana, renovada em sua relação com as leis universais, no domínio das causas reais e tangíveis.


Essa grande luz faz-se precisamente na hora em que as velhas crenças desabam sob o peso do tempo, em que todos os sistemas apresentam sinais de próxima ruína, em que os deuses do passado se cobrem e se afastam, os deuses de nossa infância, os que os nossos pais adoraram. Há muito tempo o pensamento humano, ansioso, tateia nas trevas à procura do novo edifício moral que há de abrigá-lo. E, precisamente, vem agora a doutrina dos renascimentos oferecer-lhe o ideal necessário a toda a sociedade em marcha e, ao mesmo tempo, o corretivo indispensável aos apetites violentos, às ambições desmedidas, à avidez das riquezas, das posições, das honras: um dique aos desmandos do sensualismo que ameaça submergir-nos.


Com ela, o homem aprende a suportar, sem amargura e sem revolta, as existências dolorosas, indispensáveis à sua purificação; aprende a submeter-se às desigualdades naturais e passageiras que são o resultado da lei de evolução, a postergar as divisões fictícias e malsãs, provenientes dos preconceitos de castas, de religiões ou de raças. Esses preconceitos desvanecem-se inteiramente desde que se saiba que todo Espírito, nas suas vidas ascendentes, tem de passar pelos mais diversos meios.


Graças à noção das vidas sucessivas, as responsabilidades individuais, ao mesmo tempo em que as das coletividades, aparecem-nos mais distintas. Há em nossos contemporâneos uma tendência para atirar o peso das dificuldades presentes sobre os ombros das gerações futuras. Persuadidos de que não tornarão à Terra, deixam a nossos sucessores o cuidado de resolverem os problemas espinhosos da vida política e social.


Com a lei dos destinos, a questão muda logo de face; não somente o mal que tivermos feito recairá sobre nós e teremos de pagar as nossas dívidas até o último ceitil, como o estado social que tivermos contribuído para perpetuar com seus vícios, com as suas iniqüidades, apanhar-nos-á na sua férrea engrenagem, quando voltarmos à Terra, e sofreremos por todas as suas imperfeições. Essa sociedade, à qual teremos pedido muito e dado pouco, virá a ser outra vez “nossa” sociedade, sociedade madrasta para seus filhos, egoístas e ingratos.


No decurso de nossas estações terrestres, às vezes como poderosos, outras como fracos, diretores ou dirigidos, sentiremos muitas vezes recair sobre nós o peso das injustiças que deixamos se perpetuassem. E não nos esqueçamos de que as existências obscuras, as vidas humildes e despercebidas serão em muito maior número para cada um de nós, ao passo que os homens que possuírem a abastança, a educação e a instrução representarão a minoria na totalidade das populações do Globo.


Mas, quando a grande doutrina se tiver tornado a base da educação humana e a partilha de todos, quando a prova das vidas sucessivas aparecer a todas as vistas, então os mais instruídos, os mais refletidos, desenvolvendo em si as intuições do passado, compreenderão que têm vivido em todos os meios sociais e terão mais tolerância e benevolência para com os pequenos, sentirão que há menos maldade e acrimônia do que sofrimento revoltado na alma dos deserdados. Que partido admirável não podem então tirar de sua própria experiência, difundindo em torno de si a luz, a esperança, a consolação!


Então o interesse, o bem pessoal, tornar-se-á o bem de todos. Cada um se sentirá inclinado a cooperar mais ativamente para o melhoramento dessa sociedade em cujo seio terá de renascer para progredir com ela e avançar para o futuro.


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A hora presente é ainda uma hora de lutas; luta das nações para a conquista do globo, luta das classes para a conquista do bem-estar e do poder. Em torno de nós agitam-se forças cegas e profundas, que ontem não se conheciam e hoje se organizam e entram em ação. Uma sociedade agoniza; outra nasce. O ideal do passado vem à Terra. Qual será o de amanhã?


Abriu-se um período de transição. Uma fase diferente de evolução humana, obscura, cheia, ao mesmo tempo, de promessas e ameaças, começou. Na alma das gerações que sobem jazem os germens de novas florescências. Flores do mal ou flores do bem?


Muitos se alarmam, muitos se espantam. Não duvidamos do futuro da humanidade, de sua ascensão para a luz, e derramamos em volta de nós, com coragem e perseverança incansáveis, as verdades que asseguram o dia de amanhã e fazem as sociedades fortes e felizes.


Os defeitos de nossa organização social provêm principalmente de nossos legisladores que, em suas acanhadas concepções, abrangem somente o horizonte de uma vida material. Não compreendendo o fim evolutivo da existência e o encadeamento de nossas vidas terrenas, estabeleceram um estado de coisas incompatível com os fins reais do homem e da sociedade.


A conquista do poder pelo maior número não é própria para ampliar esse ponto de vista. O povo segue o instinto surdo que o impele. Incapaz de aquilatar o mérito e o valor de seus representantes, leva muitas vezes ao poder os que desposam suas paixões e participam de sua cegueira. A educação popular precisa ser completamente reformada, porque só o homem ilustrado pode colaborar com inteligência, coragem e consciência na renovação social.


Nas reivindicações atuais, a noção de direito é objeto de excessivas especulações, sobreexcitam-se os apetites, exaltam-se os espíritos. Esquece-se de que o direito é inseparável do dever e, na verdade, é simplesmente sua resultante. Daí, uma ruptura de equilíbrio, uma inversão das relações de causa para efeito, isto é, do dever para o direito na repartição das vantagens sociais, o que constitui uma causa permanente de divisão e ódio entre os homens. O indivíduo que encara somente seu interesse próprio e seu direito pessoal ocupa lugar inferior, ainda, na escala da evolução.


O direito – como disse Godin, fundador do familistério de Guise – é feito do dever cumprido. Sendo os serviços prestados à humanidade a causa, o direito vem a ser o efeito. Numa sociedade bem organizada, cada cidadão classificar-se-á de acordo com o seu valor pessoal e o grau de sua evolução, em proporção com sua cota social.


O indivíduo só deve ocupar a situação merecida; seu direito está em proporção equivalente à sua capacidade para o bem. Tal é a regra, tal é a base da ordem universal, e a ordem social, enquanto não for sua contraprova, sua imagem fiel, será precária e instável.


Cada membro de uma coletividade deve, por força dessa regra, em vez de reivindicar direitos fictícios, tornar-se digno deles, aumentando o próprio valor e sua participação na obra comum. O ideal social transforma-se, o sentido da harmonia desenvolve-se, o campo do altruísmo dilata-se; mas, no estado atual das coisas, no seio de uma sociedade onde fermentam tantas paixões, onde se agitam tantas forças brutais, no meio de uma civilização feita de egoísmo e cobiça, de incoerência e má-vontade, de sensualidade e sofrimentos, são de temer muitas convulsões.


As vezes ouve-se o bramido da onda que sobe. O queixume dos que sofrem transforma-se em brados de cólera. As multidões contam-se; interesses seculares são ameaçados. Levanta-se, porém, uma nova fé, iluminada por um raio do Alto e assente em fatos, em provas sensíveis. Diz a todos: “Sede unidos, porque sois irmãos, irmãos neste mundo, irmãos na imortalidade. Trabalhai em comum para tornardes mais suaves as condições da vida social, mais fácil o desempenho de vossas tarefas futuras. Trabalhai para aumentar os tesouros de saber, de sabedoria, de poder, que são a herança da humanidade. A felicidade não está na luta, na vingança; está na união dos corações e das vontades!”